domingo, 29 de dezembro de 2013

"And to think... I hesitated!": Hellbound - Hellraiser 2


"Hellbound: Hellraiser 2", para muitos, é o caso do filme que todos gostariam de amar, mas não conseguem. No entanto, gosto cada vez mais. Por mais problemas de roteiro (e são vários) e de produção (não poucos) que tenha, cria uma mitologia intrigante, relativamente formada e complexa. No lugar de repetir a fórmula, há uma expansão da trama, com o advento da dimensão do inferno e do papel dos cenobitas. Como o primeiro, "Hellbound" não é tímido na violência e no retrato de tabus sexuais sob a metáfora de personagens sobrenaturais. É um horror feito para adultos, o que é sempre refrescante quando se trata de entretenimento para as massas. Características da obra de Clive Barker, como a forte sexualidade e o teor maduro, são respeitadas. Isto se deve pelo autor ter participado ativamente da produção, o que não ocorreu nas sequências. Devido a compromissos, ele terceirizou a direção para o amigo Tony Bill. Embora tecnicamente fraco, ele é superior na direção de atores, o que permitiu performances convincentes dos novos atores. Barker, em todos os filmes que dirigiu, demonstrou que interpretação não é algo que ele saiba extrair ou entenda, inclusive no primeiro "Hellraiser".



Um dos principais acertos é o vilão interpretado com a medida certa de convicção e sensibilidade camp por Kenneth Cranham. Ator shakesperiano por formação, Cranham oferece uma interpretação leve e relaxada, ao mesmo tempo em que transmite a mudança emocional por que o personagem passa: tenso e comportado no começo, fascinado e assustado no meio, e, finalmente, monstruoso. Dr. Channard é uma versão contemporânea do arquétipo do cientista louco. Enquanto Frankenstein, Dr. Moreau e Dr. Jekyll se envolviam em empresas mal-fadadas pelo simples desejo de adquirir conhecimento e brincar de Deus no processo, os impulsos de Channard são mais humanos. Ele tem um obsessão sexual pela Configuração dos Lamentos e os cenobitas, disfarçando a real natureza de seu interesse como uma busca acadêmica. No entanto, à medida que adentra o universo, seu comportamento se torna mais impulsivo e físico. Quando percorre os corredores, vê imagens de bizarros atos sexuais. Sem hesitar, beija o cadáver reanimado da vilã Julia e lhe traz vítimas para que a mesma se reconstrua. A própria forma de como Julia regenera seu corpo, sugando "fluídos" de suas vítimas (homens, na maioria), enfatiza o aspecto sexual e destrutivo dos personagens e deste universo. (Não esqueçamos a óbvia e assumida inspiração dos cenobitas em atos e vestimentos sadomasoquistas dos anos 70 e 80). Neste sentido, é a mesma dinâmica de Julia e Frank do primeiro filme. A diferença principal é que enquanto Frank deseja escapar do inferno, Channard quer fazer parte do mesmo. Em todos estes momentos, vemos um personagem evoluindo de forma coerente pelo texto e pelo ator. O terceiro ato arruína esta construção sólida, com o maravilhoso personagem de dr. Channard transformado em um Freddy Krueger dos últimos filmes, regurgitando trocadilhos péssimos e brincando com as vítimas. Em suma, ele perde toda aquela ameaça gradativamente elaborada até a fala incrível "And to think... I hesitated!" e se torna um típico e irritante vilão de slasher movie da década de 80.


É um filme insatisfatório como todo, cuja principal falha é ser ambicioso demais para uma produção de orçamento pequeno e realizada em pouco tempo. Por optar por uma trama que se passa em grande parte em um cenário sobrenatural, com uma participação maior de criaturas fantásticas, era necessário mais cuidado com os efeitos especiais e a transição de uma realidade para a outra. Isto não ocorre. No lugar, surge matte shots que parecem pinturas, quebrando a ilusão de se estar um lugar real. A característica episódica das sequências no inferno também deixa a desejar. O filme exibe sequências grotescas e belas, com um trabalho eficaz de direção de arte, mas a impressão final é que se tratam de segmentos isolados, sem uma participação necessária na linha geral da narrativa. Embora a imaginação de Barker traduza bem na tela nestas sequências, como o reaparecimento de Frank, a falta de uma unidade fere mais do que esperado a coerência da história. E, retomando um assunto, os problemas no terceiro ato são ofensivos de tão graves. Além da destruição narrativa de um dos protagonistas, não ocorre nada além de uma perseguição tediosa às heroínas. Mais uma vez, surgem momentos tensos e bem feitos, como a batalha entre os cenobitas e o fim destinado a Channard. Mas é apenas isso em 20 minutos de filme, É pouco.




Como prefiro ousadia no lugar de algo bem acabado, mas que joga no seguro, é meu favorito da série. Os dois primeiros atos têm clima, construção sólida e, pelo menos, duas das sequências mais agoniantes e apavorantes já filmadas. É impossível não tremer ou ficar bastante incomodado com a sequência envolvendo um paciente que acredita estar sendo invadido por insetos. É perturbador e muito bem montado. O desenvolvimento dos cenobitas como personagens é uma ideia inovadora e genial. Mais do que entender como estes seres se formaram, o espectador cria uma empatia artificial e bem criada por eles. A fala "Demônio para alguns, anjo para outros" tem um sentido relevante aqui. A atmosfera dos dois primeiros atos, tétrica e lenta, permitem um envolvimento maior do espectador na trama. Assim, o desenvolvimento do mundo fantástico surge de maneira orgânica, mesmo em seus instantes extremos, como o surgimento do deus Leviathan. O filme prende a atenção devido a este clima, à imaginação da história e o personagem de Dr. Channard. Aí surge o terceiro ato... Para aqueles que curtem, recomendo uma sessão dos dois  primeiros "Hellraiser", com atenção às qualidades do segundo, que passam desapercebidas devido aos problemas acima citados. Esqueçam o resto das sequências.